sexta-feira, julho 02, 2004

Arre...Sr. Doutor...

Não tenho a pretensão de ser um filósofo da linha socrática, que afirmava que nada sabia. Ou melhor que só sabia que nada sabia.
Eu sei algo mais do que isto.
Sei o meu nome, que o Porto foi campeão nacional e europeu (eu sei que custa um bocadinho,mas...) e que Scolari não percebe nada de bola, ainda que tenha uma sorte do caraças.
Sei ainda, mais uma vez sem querer parecer pretencioso ou arrogante (já chega o Mourinho), que somos um povo com a mania que sabemos tudo. Mas mesmo tudo. Para se confirmar este facto basta irmos tomar um café e ficarmos com atenção (sem parecermos cuscuvilheiros) às conversas das pessoas que lá estão.
O que mais me surpreende é a naturalidade, a segurança e a confiança que exibem em cada alarvidade proferida.
Seja qual for o assunto, qualquer tasqueiro com a 2ª classe tirada por correspondência e à noite, consegue manter um diálogo convicto e seguro com o maior dos catedráticos no tema, e ainda dizer-lhe com a maior das calmas do Mundo que está enganado, se a sua opinião for contrária à dele.
Por exemplo, no outro dia estavam dois homens de 40 e poucos anos a conversar sobre uma operação às varises que a mulher de um deles tinha feito à pouco tempo, e passo a citar:
"Pá, aquilo dói de caneco."
"Eu sei, não é que já tenha feito, mas sei."
"Ouve, é que tiram-te a veia desde o tornozelo até à virilha...E é uma veia grossa à brava..."
"Eu sei, não é que eu já tenha visto, mas sei..."
"Epá e é perigoso depois na recuperação porque se fosse outra veiazita qualquer, mas foi logo a jugular!!!!"
Após este remate final de profundo conhecimento de anatomia, e dito com tanta certeza por um e confirmado efectivamente pelo outro, fiquei a pensar se a artéria femural teria sido colocada em stand-by na zona do pescoço só para o caso de vir a ser necessária... sei lá para levar sangue ao cérebro...
Abstraí-me arrepiado daquela discussão clínica e virei as antenas para uma outra mesa em que outros dois personagens discutiam um programa do National Geographic Channel sobre um ritual dos índios.
"Então, eles fazem uma fogueira em meia lua e uma das pontas da fogueira fica a apontar para o Norte, de onde nasce o Sol!!!"
Ai, primeiro arrepio...
"Eu também vi isso, aquela coisa do mescal, dava-lhes uma grande moca e só acordavam no outro dia por causa do calor intenso, às 8 ou 9 da manhã, quando o Sol está a pique!!!"
Ui...Tentei acudir e desprovido de qualquer sentido de superioridade...
"Os senhores desculpem eu estar a intervir na vossa conversa, mas: o Sol, nasce e roda por esta ordem de Este para Oeste onde se põe, sem nunca passar pelo Norte. Aliás, como nos explicam na tropa, se queremos encontrar o Norte, devemos procurar na base das árvores sinais de musgo, porque devido à ausência de calor solar, se potencia a humidade e crescimento do musgo, indicando-nos o Norte. Depois, o Sol estará a pique sensivelmente às 12 horas porque é nessa altura que se encontra no seu ponto mais elevado, começando depois a decair até ao ocaso."
Mas o que é que eu fui fazer???
Um dos homens profundamente irritado como se tivesse entalado os dedos numa porta ou a gaita no fecho éclair, gritava de tal maneira irado com a minha intromissão naquele relato de profundo conhecimento científico, que até as veias lhe saltavam da cara:
" Você é uma besta. Eu estive na guerra colonial e você vem-me falar de tropa???Tenho 4 comissões de serviço efectivo no meio do mato em Angola, Guiné e Moçambique e a minha companhia nunca se perdeu e você vem-me com tretas da tropa??? Ainda não era nascido já eu andava a limpar neles,pá. Eu estive no 25 de Abril, para vocês agora terem liberdade para se meterem na conversa dos outros, oh caneco...No meu tempo...oh...oh...Se um gajo tinha coragem de se armar em sabichão para dois homens como nós...ui...ui...Já estavam aqui os gajos da PIDE a querer saber tudo e ias dormir ao Limoeiro ou ao Torel...Por menos que um abuso destes vi eu um gajo passar dois anos em Peniche, no segredo...Torturado com choques eléctricos, a levar bastonadas no lombo, sem dormir semanas inteiras, espancado, até as unhas lhe tiraram...Mas já que estás armado em espertalhão das meias dúzias...Explica-me lá, oh Doutor...
E o desconto à latitude e longitude??? Pago eu??? Olhe para lhe dizer já aqui: Se você for para Badajoz é uma da tarde e se passar para Elvas é meio dia, o Sol está no mesmo sítio, onde é que ele tá a pique??? Ãhhh??Ãhhh??? Vá diga lá, seu parvalhão!!! Já viste isto??? Os putos agora têm na mania que sabem tudo e depois só dizem destas aberridades,pá!!!"
"Caga nele, oh!!! Eles não sabem que tem que se dar um desfazamento à posição onde a gente se encontra. A gente é que sabe, continua lá..."
Não me calei. Voltei à carga dizendo que a Terra tem um movimento de rotação o que leva a que ao meio dia seja em que país for, o Sol estará a mais ou menos 90 graus fazendo uma perpendicular com o nosso planeta. E quando ia avançar para as teorias mais que comprovadas por Copérnico e Galileu, do movimento de translação...fui brutalmente interrompido.
"Oiça lá, seu pinflim. Mas estás tu a dizer essas coisas para quê??? Pensas que lá por ser mais novo que nos enganas, é??? Toda a gente sabe que nunca ninguém foi ao Sol, queres vender o postal dos 90 graus a quem??? Aquilo lá faz mais calor que isso...90 graus...Ai, ai... E translação... mas pensas que a gente não sabe que isso é quando se mudam os mortos de cemitério. Sim!!! Que quando quis levar a minha falecida mãe daqui lá para o Safurdão ( se não sabes fica na Guarda), tive que pagar a quase 60 contos pela taxa de translação. 60 contos paguei eu e mais os meus irmões para levar a minha falecida mãezinha (Deus lhe tenha a alma em descanso). Daqui a nada dizes que a minha querida mãe também anda à volta do Sol, não??? Vá diz isso que eu arrebento-te o focinho de murro..."
Desisti de falar e ainda pedi humildes desculpas aos dois prémios Nobel que ali se prostravam perante mim e cuja aura de conhecimento irradiava daquelas duas cabeças de cepo, que me levou a pensar: "Mal empregada berlaitada deram os paizinhos destes dois encéfalos luminosos, que aqui se desperdiçam entre uma e outra imperial e um pires de tremoço."
Calado, vergado por tão superior prova de cultura e conhecimento científicamente e até empiracamente comprovados, mas não surdo!
Na mesa por detrás da minha ouvi um diálogo muitíssimo interessante sobre geografia:
"Eu, na minha lua de mel fui para a Sardenha e curti que nem um maluco. Os espanhóis é que sabem tratar um gajo, aquilo é mesmo só para turistas, não é como cá!!!"
"Eu fui para Cancun. Só não gostei foi das medidas de segurança no aeroporto quando lá cheguei. Porra, perguntaram-me tudo! Se ia de férias, nome do pai e da mãe, quantos dias ia lá ficar, epá sei lá..."
"Já sabes nesses países africanos é mesmo assim..."
Saí a correr que só me lembrei depois de ter que ir pagar a conta.
Haja pachorra...